CAPITULO
1 ESPANTO
Prezada Neleh Naighsap,
Me chamo Pedro, tenho vinte e três anos, sou carioca, estudante de
arquitetura e artista em formação. Venho tomar a liberdade de contatá-la para
apresentar o meu trabalho em arte contemporânea. O texto abaixo é inédito e foi
escrito por mim no ano passado. É gostoso pensar que toda arte pode começar
igualmente tanto com desenhos como com o uso da palavra - ambos são traços e
curvas que apresentam visões de mundo. E me inspira criar literatura que
traduza uma visão da arte a serviço da ativação da transcendência: para algo
maior do que aquilo que nos restringe e dirige no cotidiano; afinal,
controlados já o somos, imensamente e em tudo. Assim, ao compartilhar esse
texto com você, estarei preparando-a para minha obra (que está no outro anexo
do e-mail). Peço desculpas pela invasão do seu espaço, do seu tempo. Sei que
são coisas raras, matérias primas de nós mesmos. Por favor, sirva-se de tudo
que está aqui. Me coloco à disposição para ouvir/ler o que puder me dizer. Caso
venha a gostar, saiba que, em parte, o que faço aprendi com você.
Sincera e atenciosamente,
Pedro Benjamim
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Era um domingo de sol e apesar de ser outono na cidade do Rio de
Janeiro, o calor fritava os miolos de quem se aventurasse a sair de casa, fosse
para uma gelada no bar do Geraldo, fosse para comprar pãozinho, mortadela e
leite para o café da manhã das crianças na mercearia da Lourdes. O campinho de
futebol do bairro, um terreno pequeno e improvisado que ficava a meio caminho
da base do morro até a última casa, cujo único mérito para se jogar pelada era
o fato de ser de terra batida, cumpria o seu papel para a molecada que morava
no morro. Entre chutes, pernadas e bicos pra qualquer lado feitos por aqueles
menos habilidosos, havia alguns dribles infantis desconcertantes, considerando
a idade das crianças que disputavam a bola dente de leite estampada com
"Para Vereador Vote 1221 Vote Cabrito". As traves eram simuladas com
havainas de um e de outro, gastas nas pontas dos dedos e dos calcanhares,
invariavelmente com um dos lados mais gasto que o outro. Os mais presentes,
moleques que batiam ponto todo dia mesmo, eram uns cinco ou seis, de sete a
doze anos, quase todos sempre sem camisa e com os pés no chão. Famílias
completas, pais sozinhos e mães solteiras passavam agora por ali de mãos dadas
com seus pequenos. As crianças pediam para ficar jogando bola enquanto o que
tinha que ser feito era feito por seus pais, tios etc. As ruas eram sinuosas
como as de um típico morro carioca, com degraus feitos na pedra, tortos e
curtos, ou altos demais em certos trechos, dando a impressão de que tinham sido
feitos às cegas, à noite ou de dia por uma turma que tinha almoçado a feijoada
da Inês, a mulher do Geraldo, dono do bar, tomado umas pingas e enxugado umas
loiras para na sequência tirar uma soneca debaixo de qualquer alambrado com
sombra generosa, de preferência numa rua sem saída que encanasse um ventinho.
Com certeza, não foi pensando em senhoras de idade carregadas de sacolas de
mercado, já com alguma dificuldade trazida pelo tempo, uma doença aqui, uma
enfermidade ali, que os rapazes fizeram a escada principal da comunidade. Mais
parecia uma pegadinha sacana com uma gente simples e precisada, claramente à
revelia da necessidade de ser uma via expressa para quem subia e descia todos
os dias da semana, no ir e vir do trabalho e no circular do fim de semana. A
cada vinte ou trinta degraus, afinal variava também com a inclinação do terreno
e a passagem de algum córrego, formava-se um platô cimentado para respeitar o
aclive suspenso pela natureza, criando uma espécie de pátio para as portas de
casas voltadas para a frente de cada nível, onde as pessoas se encontravam e
ficavam a par dos vizinhos, conversando um pouco, às vezes por meia hora ou
mais, o suficiente para as sacas plásticas quase rasgarem os dedos de mãos
femininas calejadas pelo trabalho braçal de lavar, passar, cozinhar e tudo o
mais que as mulheres faziam, para suas próprias famílias assim como para
famílias de classe média que as empregavam como domésticas. As melhores casas
ficavam mais para o topo. Seus moradores foram os primeiros a chegar e ocupar a
região com barracos improvisados, porém com o dobro do terreno das casas
localizadas no sopé do morro. Os primeiros ocupantes do Morro da Providência,
localizado na Zona Portuária do Rio de Janeiro, entre os bairros do Santo
Cristo e Gamboa, tinham chegado ali em 1897, retornando da Guerra de Canudos.
Ocorre que o governo prometera aos soldados cariocas residências como prêmio
caso saíssem viroriosos da campanha. A Guerra terminou com um massacre de mais
de vinte mil mortos, entre soldados locais e tropas vindas de dezessete estados
brasileiros, distribuídas em quatro incursões militares. E a promessa fora
descaradamente não cumprida. Desapontados e exaltados, os soldados decidiram
tomar uma providência. Ocuparam uma região do morro sem nome e a batizaram
figurativamente de Morro da Providência, alusão clara à atitude tomada diante
da negativa do poder público em dar-lhes o que havia sido prometido. Logo o
morro mudaria de nome para Morro da Favela, em referência a um dos morros onde
a cidadela de Canudos foi erguida no interior da Bahia - favela era o nome
popular de uma planta que encobria a região do sertão bahiano, a Cnidoscolus
quercifolius. A ocupação mais ampla deflagrou-se no final do século XIX e
início do século XX. Mas a partir de 1904, o então prefeito da Cidade do Rio de
Janeiro, o engenheiro Pereira Passos, iniciou uma grande reforma urbana. O Rio
era a capital da República e vivia período de grandes transformações. O
Prefeito queria dar-lhe ares de Paris, com praças, boulevards, como eram
chamadas as ruas largas de passeio público na cidade luz, e saneamento básico.
Para tal, Passos mandou retirar cortiços e casebres populares localizados no
Centro da Cidade, transferindo a população para os morros adjacentes à região
portuária. Os cidadãos relegados a segundo plano eram essencialmente negros
pobres, ex-escravos e filhos de escravos. Nessa época, a violência cresceu em
todas as novas comunidades e o Morro da Favela, primeiro morro carioca como os
conhecemos hoje, aquele que deu origem aos demais, era considerado o morro
carioca mais violento de todos. Assim se seguiram os anos e a partir de 1920,
qualquer ocupação irregular de colina com barracos disformes de madeira e
alvenaria, passou a ser conhecida pelo nome de favela. De lá para cá, as
favelas cresceram e com elas seus problemas. Forças políticas historicamente
opostas discutiram se a solução passaria por integração urbana ou remoção
urbana. Ganhou a permanência até então, e eis que desde dois mil e oito, a
comunidade do Morro da Providência conta com uma Unidade de Polícia
Pacificadora, a sétima UPP carioca, com o efetivo de duzentos e oito policiais,
um projeto da Secretaria Estadual de Segurança do Rio de Janeiro que tem a
intenção de instituir polícias comunitárias em favelas para tentar desarticular
quadrilhas do crime organizado, principalmente o tráfico de drogas. A força do
tráfico nas favelas sempre foi tão presente que no mesmo ano em que a UPP
entrou no Morro da Providência, entre as mais de quinhentas favelas existentes
no Rio de Janeiro, somente uma, a Favela Tavares Bastos, não tinha a presença
de bandidos ligados ao tráfico.
Francisco Wilson da Silva morava no Morro da Providência fazia vinte
anos. Chegou no meio de um verão especialmente quente. Era um menino de uns
cinco anos de idade, franzino e faminto como todo menino de cinco anos de idade
que mora na roça. Seu pai, Severino Bastos da Silva, tinha vindo um ano antes
do Ceará para buscar trabalho no Rio de Janeiro. Depois de assentado numa
casinha do Morro da Providência, com salário fixo num trabalho de construção,
tinha decidido trazer a família: sua mulher, Luiza, e os três filhos, os gêmeos
Francisco Wilson da Silva e Wilson Francisco da Silva, e o caçula Thonson
Cleverson da Silva, que curiosamente viria a figurar como o mais inteligente da
família. No comboio Da Silva, veio também a irmã de sua mulher, a solteira
Elvira. O pai de Severino havia falecido fazia dois anos, mas apesar disso, a
matriarca da família, Dona Nina, não quis vir, como que acreditando em mau
presságio, pois não conseguia aceitar morar num morro quando tinha no chão sua
casinha de barro, uma horta e uns bichinhos. - Onde eu vou botar os bode, meu
filho? E o jumento vai pra dentro de casa também? Severino ria e no fundo
deliciava-se com a destemperança bem-humorada daquela senhora que o tinha
parido, dado leite e cuidado para que fosse um homem bom e pegado no trabalho.
Assim, não houve jeito e o jeito foi Dona Nina ficar para tràs como uma cama
que se apresenta grande demais para caber na casa nova e segue apenas no
coração do dono. Logo, não se passaram nem dois anos completos, a mãe de
Severino faleceria aos sessenta e cinco anos de idade. O filho pediu dinheiro
emprestado ao chefe na empresa de construção e foi enterrar a mãe no sertão.
Soube pelos poucos amigos que a velha tinha morrido de tristeza, desgosto e
arrependimento. Tudo junto. Não suportou viver um dia longe do filho único e
seus netos. Ficava dias sem comer qualquer coisa, nem um pedaço de pão ou
leite, olhando as fotografias bonitas que Severino mandava. As cartas do filho
chegavam a ela todo mês. Depois que abria o envelope, chorava quase sem parar,
secava sentindo falta do que a vida tinha lhe dado de mais precioso: um filho bom,
uma nora, moça boa, e os filhos de seu filho. As crianças cresceram naquele
morro. Gostavam de subir até a rocha grande, como chamavam uma quina de pedra
incrustada numa ponta do morro, metade do caminho até sua casa no alto. De lá,
trepavam nas árvores para comer manga, jaca e laranja, enquanto miravam o
horizonte, vendo os barcos chegando e saindo com suas cargas de todos os tipos
em caixinhas que lembravam os blocos de brincar com que a patroa de sua mãe os
havia presenteado no último Natal. Eram apaixonados pelos legos coloridos.
Passavam horas a fio sentados no chão da casa de dois cômodos que alugavam de
um senhor comerciante de peças automotivas e dono de diversos imóveis no morro.
Dizia-se que tinha imóveis no Centro da Cidade também, umas salas comerciais
alugadas que rendiam uma pequena fortuna mensal, coisa de uns cinquenta mil. As
crianças iam à igreja semanalmente com os pais. Franscisco Wilson, Wilson
Francisco e Thomson Cleverson colocavam roupas de domingo, com camisa para
dentro da bermuda, botões fechados até o pescoço e cabelos perfeitamente
penteados para os lados, com o recorte sempre começando do lado esquerdo, como
o pai e avôs o usaram a vida toda. Até o vento tinha pena de bagunçar os
cabelos das três crianças e acabar com a aura pueril que meninos devem
apresentar, especialmente quando estão a caminho da Igreja num domingo de sol.
Os pais tornaram-se evangélicos e a palavra do senhor era lida todos os dias na
sala da casa, com a família calada, logo antes do jantar. Durante as refeições,
sentavam-se todos à mesa e, mais uma vez, Severino agradecia a Deus Pai, agora
pela comida que estava sendo servida, pela saúde da família e os bons empregos
que ele e a mulher conquistaram. A casa era simples, porém enfeitada com
carinho por uma mãe dedicada. Toda equipada com eletrodomésticos linha branca e
televisão tela plana grande. Brinquedos, roupas e perfumaria nunca faltaram às
crianças. Entre sobes e desces, pipas empinadas e perdidas, piques-pega,
policia e ladrão e futebol no campinho, o mesmo que ainda estava lá nos dias de
hoje, Francisco e seus irmãos cresceram alegres e saudáveis. Os estudos foram
feitos em uma escola pública perto de casa. Como bons alunos que eram, tinham
sempre direito a uma hora de televisão por dia, com canal a sua escolha,
contanto que não fosse no horário do Jornal Nacional, nem da novela das oito.
Severino gostava de colocar as crianças para dormir, contar histórias dele
quando era pequeno e outros causos bem amalucados envolvendo seu pai e sogro.
Eram um misto de folclore com reminiscências de infância, o que criava um clima
único de aventura e mistério, deixando as crianças inteiramente vidradas.
Depois de atender aos frenquentes pedidos por mais uma história, dava um basta
e se sentava ao lado da cama de cada um, aguardava os pequenos colocarem as
mãos espalmadas e, por vezes, perguntava - Quem sabe por que a gente coloca as
mãos assim, juntinhas, coladas uma na outra? As três crianças gritavam ao mesmo
tempo - Eu sei, eu sei! E Severino, após lembrar quem foi que respondera a
pergunta da última vez - Hoje é a vez do Thomson Cleverson! - É a gente colado
no papai do céu, papai! E Severino - Muito bem, meus amores. Por fim, beijava a
fronte de cada um e dizia - Obrigado meu filho, que Deus o proteja, durma bem. Estavam
entregues até a manhã seguinte. Sentia-se grato por ter sido escolhido para
receber e cuidar daquelas criaturinhas tão especiais. Eram seus filhos, eram
bons e estudiosos, eram educados e doces. Afinal, o que mais poderia pedir a
Deus? Nada mais, já tinha tudo que precisava bem ali na sua frente. As crianças
instantaneamente fechavam os olhos e punham-se a dormir, vivendo agora em sonho
as suas próprias fantasias e aventuras. Severino saia de fininho e ainda olhava
para trás, pela fresta da porta mais uma vez como quem sabe que aquilo não
duraria para sempre. As crianças iriam crescer, desenvolver vontades e desejos,
frustrariam-se umas tantas vezes por seu pai e sua mãe serem pobres e
trabalhadores, portanto incapacitados de suprir o que viriam a desejar. Isso
era motivo de aflição para Severino. Como poderia quebrar com aquela sinistra
previsão de futuro que enxergava ali em seus primeiros ramos? Como uma grama
que leva um tempinho para crescer e dominar a terra fofa e adubada, mas
irremediavelmente acaba subindo à superfície em busca da luz do sol. As
crianças também iriam querer mais da vida: melhores roupas, melhores
brinquedos, melhores doces e sorvetes, melhores festas de aniversário e assim
por diante. Era como um espinho em seu coração. Só de imaginar que não poderia
prover tudo do bom e do melhor, ou ao menos, melhor do que já o fazia,
deixava-o entristecido e um tanto decepcionado com a vida. A fé, todavia, fazia
o papel de apaziguadora das dores. Graças a Deus, as crianças tinham perfeita saúde,
sempre tiveram. Tirando a gravidez do caçula, que enroscara-se no próprio
cordão umbilical ainda dentro da barriga da mãe, provocando contrações
prematuras que a fizeram desmaiar logo após o jantar e ser levada às pressas
para fazer uma cesariana, tirando aquela noite, quando achara que tudo ia
desmoronar, ficando viúvo e com um filhote natimorto, tirando aquele sufoco,
tudo tinha dado certo com seus três tesouros. Durante a semana, Severino sentia
falta das crianças e, por causa disso, às vezes, levava-as para ver onde
trabalhava. Severino era mestre de obras de uma construtora carioca. Bastava
saltar da linha que fazia o trecho entre o centro e os diversos locais de
trabalho pelos quais já tinha passado na vida, e as crianças ficavam extasiadas
com a visão daquelas máquinas enormes amarelas, algumas com dentes de aço que
lhes botavam medo só de olhar. Subiam nos tratores, nas retroescavadeiras e
sentavam-se na cabine do caminhão de misturar cimento. Francisco Wilson era o
que mais gostava daquilo tudo. E adorava fazer perguntas sobre o que seria
aquele espaço no futuro, que tipo de gente moraria ou trabalharia ali, e ainda
quem eram os patrões de seu pai. Severino respondia tudo com calma para não se
atrapalhar diante do filho que lhe parecia mais interessado em sua profissão do
que os outros que no momento corriam alucinadamente por entre pilhas de
tijolos, desviando de carrinhos com restos de cimento e enxadas largadas no
chão. E foi dessa maneira, nas excursões às obras que o pai tocava, que aquelas
crianças tiveram contato com o mundo do trabalho, cresceram e formaram-se em
cursos técnicos no Senac para logo começarem a ganhar seu próprio sustento.
Wilson Francisco saiu cedo de casa, aos vinte anos, e foi morar na favela da
Rocinha, onde trabalhava como eletricista na subestação da companhia de luz. O
caçula, Thomson Cleverson, quis seguir o caminho da cozinha e após passar
aperto em dois empregos iniciais, foi contratado como ajudante em um
restaurante chique na zona sul, dividindo um quarto em Copacabana com dois
colegas do trabalho. O único que permaneceu no Morro da Providência, morando na
mesma viela dos pais, foi Francisco Wilson. Casou-se com uma bonita moça
chamada Clara e era o único entre os irmãos que já tinha filhos no casamento,
uma menina de quatro anos e um menino de cinco, Maria e Gabriel.
E foi naquele domingo de sol tipo maçarico, com moleques chutando bola
desde cedo no campinho do morro, que Francisco Wilson, a mulher Clara, e os
filhos tinham convidado os irmãos de Francisco para um almoço em sua casa. Eram
nove e trinta e cinco quando desceram os quatro até o açougue para comprar um
bonito pedaço de músculo. Passavam pelos vizinhos e eram cumprimentados com
alegria, em parte porque eram pessoas muito simpáticas, tanto Francisco como
sua mulher, em parte por causa das crianças todas arrumadas, chamando a atenção
de avós e mães pelo caminho. A venda ficava a quase duzentos metros da entrada
da favela. Era uma ótima oportunidade para Francisco levar as criança, mesmo
que ainda muito pequeninas, para um passeio, e mesmo que fossem caminhar
praticamente só até a esquina. No caminho, as crianças se comportavam e
mantinham as mãos dentro das mãos de seus pais, uma com cada um, sendo o menino
Gabriel com Francisco e Maria com Clara, para terem o direito de ganhar um
sorvete cada um na volta. Era costume dos pais fazerem tal promessa, pois
beneficiava ambos os lados, os adultos com o bom comportamento dos filhos e as
crianças com os picolés, uma espécie de obrigado pelo seu comportamento. Depois
de subirem os sessenta degraus que iam do asfalto até a porta da sua casa,
Clara tratou de tirar as roupas de passeio das crianças até um pouco antes dos
tios chegarem. Colocou então bermuda e camiseta em cada um, e um desenho para
passar na televisão da sala. Aquilo foi o suficiente para os dois aboletarem-se
entre almofadas e caírem em hipnose com as aventuras do pica-pau na programação
de sábado da TV Record. Fancisco sentava-se na cadeira de balanço perto da
janela e lia seu jornal. Se permitia tomar uma branquinha "para ajudar a
descer o amargo das notícias". Ao contrário de seus pais, Francisco e seus
irmãos não tinham se convertido à igreja evangélica. Frequentavam as igrejas
católicas tradicionais aos domingos. A bem dizer, isso mais valia para Francisco
Wilson que estava casado e com filhos do que para seus irmãos ainda sem as
obrigações que uma família impõe. Na geladeira, havia garrafas de cerveja para
o almoço e sob a mesa a garrafa de pinga caso tivesse companhia para um brinde.
Enquanto na sala tudo transcorria tranquilamente, Clara colocava a peça de
carne para ferver na panela de pressão. Clara era uma cozinheira de mão cheia.
De segunda a sexta, transformava peixe, frango e filé mignon em assados
incríveis na casa de um diretor de TV e sua mulher, uma ex-atriz. Em casa,
rebolava para sair do básico
carne-de-segunda-acompanhada-de-arroz-feijão-e-salada. A verdade é que não
havia qualquer diferença entre o sentimento que dedicava ao preparo da comida
do marido e seus filhos e como transformava ingredientes nobres em pratos
incríveis na casa dos patrões com seus convidados. Gostava mesmo de cozinhar,
servir e se fazer presente por inteira fosse para quem fosse a refeição. Uma
hora depois e o aroma que saia da cozinha era motivo de comentário na sala e
fora da sala, nas casas ao lado, por outras donas de casa e seus maridos. A
carne de segunda tinha virado um guisado desfiado em molho ferrugem, com alho e
cebola refogados, molho de tomate e tomates picadinhos com rodelas de cenoura
cozida. O cheirinho do feijão temperado emanava da panela e revelava o louro e
o pedacinho de toucinho que tomava conta da cozinha e ia sorrateiramente
estimular o olfato das crianças e seu marido na sala. Clara era disparada a
melhor cozinheira do pedaço e isso era comprovado nos almoços promovidos entre
vizinhos em datas festivas como Dia das Mães, Dia das Crianças, Natal e Ano
Novo. Todos acabavam provando e repetindo, quando comiam depressa e chegavam a
tempo de se deparar com uma última porção, o que quer que fosse que Clara
tivesse cozinhado.
- Mãe, tô com fome!
- Eu também!
- Que isso? Muita calma, vocês acabaram de comer bolachas de maizena,
isso logo depois daqueles picolés. Esperem seus tios chegarem!
- Eles já chegaram!
Foi as crianças pedirem para comer que os irmãos de Francisco bateram à
porta da casa, chamando pela família com brincadeiras típicas de tios com
sobrinhos pequenos.
- Ô, de casa! Fui convidado para almoçar aqui, cês num vão abrir essa
porta não?!
O som da televião tinha encoberto os chamados de Wilson e Thomson. Logo,
Francisco abriu a porta e abraçou os irmãos que fazia tempo não apareciam. As
crianças e o pai receberam-nos com a alegria natural de ocasiões quando irmãos
muito colados no passado se reencontram. Clara veio da cozinha cumprimentá-los.
Trajando avental estampado com flores bem coloridas, abriu largamente os braços
para caberem logo os dois mais quem quisesse ser abraçado por ela. Os cabelos
levemente encarapinhados e cortados com estilo davam a ela ares de cozinheira
de prigrama de TV. Terminado o abraço nos cunhados, disse qualquer coisa sobre
os cunhados estarem mais magros, dando a chance ao marido de dizer - Meu amor,
eu é que estou mais gordo... Afinal, sou casado com a melhor cozinheira do Rio
de Janeiro! O clima de confraternização estava criado. Francisco foi até a
porta da casa e disse que já voltava com os pais. Saiu, bateu a porta e foi
cumprir o combinado de que quando os dois chegassem, iria avisar os velhos
Severino e Luiza. Não demorou nem cinco minutos e já estavam todos reunidos na
sala, sentados ao redor da mesa. Francisco ofereceu um gole de pinga aos
irmãos, que aceitaram prontamente, e serviu os pais, a mulher e as crianças com
água e coca-cola. Todos levantaram seus copos e fizeram um brinde à saúde da
família e ao sucesso em seus empregos, Francisco celebrou a presença de irmãos
e pais em almoço na sua humilde casa. Um dos irmãos disse que logo casasse iria
fazer o mesmo: reuní-los em torno da mesa em sua casa. Todos beberam e comeram
fartamente, dos pestiscos à sobremesa especial de Clara, o mais delicioso pudim
de leite. Servido o café, os pais de Francisco foram para casa descansar. O
irmão caçula de Francisco apagou no sofá da casa abraçado aos sobrinhos, todos
em igual sono profundo. Francisco e a mulher limparam a mesa, lavaram a louça e
já era noite quando serviram outro café forte aos irmãos de Francisco antes de
irem embora. O casal assistiu um pouco de televisão enquanto trocavam
comentários sobre o dia e as histórias que haviam surgido à mesa. Disseram como
era bom estar em família, que aquilo tudo fazia os problemas ficarem pequenos,
transformando-os em marido, mulher e pais mais fortes e ligados a Deus e a
coisas boas. Francisco e Clara eram muito sensíveis e percebiam as coisas de
forma diferente, reparando em conexões que suas emoções faziam com as dos
outros, em sua conexão com o mundo e especialmente como a vida, que era caos na
cidade, no país e no mundo, com gente se matando, roubando, mentindo e se
drogando até a morte, ficava colorida e parecia abraçada por uma luz constante
que os protegia e garantia que nada faltaria jamais. Mas sabiam que aquilo não
fazia sentido se interpretado face à realidade difícil, sem muitos momentos de
escape do trabalho exaustivo até o fim de suas vidas, da parca aposentadoria
que receberiam do INSS e de uma imobilidade social e cultural a que estavam
fadados. Tudo isso era sabido e estava bem presente em todas os seus
pensamentos, tanto dele quanto dela, fizesse sol ou chuva, fosse dia ou noite.
Mas fazer o quê? A vida deles era bem diferente da vida dos empregadores de
Clara, por exemplo, que viviam em festas para comemorar lançamentos de novos
programas e filmes. Viajavam duas vezes por ano para lugares distantes e sempre
retornavam com mais malas do que foram, todas cheias de coisas novas. Aparelhos
eletrônicos, livros, CDs, filmes, tênis, roupas, esculturas, posters, quadros,
comidas, bebidas, doces, chocolates, temperos e mais. Enfim, uma infinidade de
coisas que Clara nunca teria, que seu marido nunca veria, que seus filhos nunca
usariam. A casa em que trabalhava era sim, aquilo sim, era uma casa. Moravam em
São Conrado, lá em cima da montanha, sem filhos. Pobre morava em morro, rico
morava em montanha. Jardim com paisagismo, sauna, piscina, canil para dois
cachorros e quatro suítes abraçadas por duas grandes salas e uma saleta. Esse
era o dia a dia de Clara. Não queria ser mal interpretada, de jeito algum. Era
feliz onde trabalhava, o casal era ótimo e a tratava muito bem. Não tinha
qualquer ponta de inveja. Sabia que não tinha graves problemas, ou algum
complexo, como Francisco às vezes falava. Não, de jeito algum. Clara era feliz
com quem tinha se casado e feito filhos maravilhosos. Era uma mulher realizada
em família e no trabalho que fazia com paixão - e agradecia a vocação natural
para como tratar os alimentos, para o tempero bom e o tempo certo, pois
cozinhava lindamente sem nunca ter aprendido uma técnica que fosse, com
ninguém, nem com sua própria mãe. Era talento seu mesmo, um presente de Deus
que garantia seu emprego e um salário bem acima da média de suas amigas do
bairro ou de suas colegas que trabalhavam em outras casas no mesmo condomínio
de seus patrões. Mas bem que Clara tinha seus sonhos. Não eram materiais tanto
assim. Eram mais do tipo emocionais, sim sonhos emocionais. Uma paisagem linda
a cativava, por exemplo. Apesar de estar muito bem servida na cidade em que
nascera, ouvia falar de outros países e via fotos de seus patrões na neve, em
lagos enormes e montanhas sem fim, muito mais altas que o Corcovado. Ficava com
aquele gostinho e o gostinho envolvia sua alma. Francisco comungava com a
mulher, também tinha inquietações. De certo modo era parecido. Mas, ao mesmo
tempo, muito diferente. Tinha uma pegada na vida de forma mais prática. Quando
criança adorava desenhar, mas foi aos poucos largando. Também gostava de ouvir
músicas melodiosas como as que tocavam nas igrejas e em rádios AM que seu pai
escutava aos domingos. O pai não entendia como um garoto de dez anos de idade
podia gostar de boleros, música popular brasileira e algumas melodias
clássicas. Mas perto dos dez anos abandonou tudo aquilo para jogar bola com os
amigos do bairro e soltar pipa com os irmãos. Eram Clara e Francisco, feitos um
para o outro, pensou ela olhando pela janela da sala. Era sua vez no banheiro.
Apagou a luz da sala e foi tomar banho. Amanhã era segunda-feira, dia de
trabalho.
Francisco acordou às seis e meia da manhã e Clara já tinha saído para o
trabalho ou não chegaria às oito em ponto na casa oito da Rua Duvivier, em São
Conrado. A greve de ônibus tinha reduzido as linhas e agora movimentar-se pela
cidade tinha virado uma grande aventura. Francisco deu às crianças o café que
Clara tinha deixado sobre a mesa, com leite, biscoitos, queijo, presunto e
bolo. As fez escovar os dentes e partiu às sete e quinze para deixá-las no
portão da escola pública antes das sete e meia, quando começavam as aulas. Dali
seguiu a pé até o novo Museu de Arte do Rio - Mar. Estava Naquela obra fazia um
ano, pertinho de casa, o que o favorecia para cuidar dos pequenos. Acabava que
ganhava sempre algum tempinho livre que usava para resolver coisas da família.
A obra do museu estava terminada e naquela semana aconteceria a inauguração. O
que restava a ser feito eram pinturas de segunda demão em algumas paredes de
salas que não seriam abertas ao público, reduzindo a pressão do cliente sobre a
construtora e, por sua vez, da construtora sobre seus funcionários. O Mar tinha
quinze mil metros quadrados de construção e oito grandes salas de exposição. Os
dois prédios que compunham o complexo passaram por muitas intervenções. O
Palacete Dom João VI, inaugurado em 1916 e tombado pelo município em 2010, foi
submetido a um longo e meticuloso processo de restauro para se transformar no
pavilhão de exposições do MAR. Eram dois edifícios que tiveram que ser unidos
no meio, com passagens entre os andares e um teto contínuo entre os prédios por
onde começariam as visitações. Lá de cima, avistava-se toda a Região Portuária
do Rio em transformação. Francisco chegou e foi logo reportar-se ao seu chefe
direto, o mestre de obras. Apesar dos seus vinte e oito anos contra os
cinquenta e cinco do mestre de obras, havia nascido ali uma amizade diferente.
Francisco era muito novo, mas absolutamente talentoso. Bastava pedir uma vez,
explicar uma só vez, que Francisco, muitas vezes sem saber exatamente o que
teria que fazer, compreendia a complexidade da tarefa e ia até o final,
buscando o apoio de peões, carpinteiros, soldadores, de quem fosse, para
garantir que estaria feita e entregue no tempo certo com alta qualidade. O
capricho tinha herdado da mãe, a perseverança e a vontade de vencer do pai.
Nelson, percebeu isso logo cedo quando lidou com Francisco na primeira obra, um
prédio comercial em reforma também no Centro do Rio. Depois daquela obra,
decidiu recrutá-lo para a equipe de forma fixa. Francisco ganhou um aumento no
final daquele ano e lá se iam cinco anos dos dois trabalhando juntos. A amizade
no trabalho avançara para a vida pessoal. Nelson tinha sido convidado para o
batizado dos filhos de Francisco e ido somente no último por conta de um
aniversário de um parente seu naquele mesmo dia. O chefe perguntava por Clara e
as crianças sempre que lembrava.
- Bom dia, Seu Nelson.
- Bom dia Francisco.
- Seu Nelson, abre essa semana, né?
- Sim, a inauguração é nessa quinta-feira. É quando vem o pessoal
importante.
- Muita gente, Seu Nelson?
- Não sei, mas deve ser, sim. O Prefeito vem aí, os convidados, o
pessoal da CDURP.
- CDURP?
- É aquela turma boa da Companhia... Ah, não sei o quê do Porto. Dona
Gabriela, Dr. Sérgio, o pessoal que volta e meia passa por aqui pra reunião.
- Sim, lhe falei que na casa da Dona Gabriela trabalha a Teca, prima da
minha mulher?
- Falou, sim. Coincidência essa, hein, Francisco?
- É... Seu Nelson, eu queria convidar o senhor e sua família pro
bolinho do Gabriel... O menino está completando cinco aninhos no próximo
domingo. Coisa simples mesmo. Por favor, não precisa levar presente, é só
aparecer pro parabéns com lanche... Vai ser só os amigos mais chegados e a
família que é pequena. O senhor vai fazer alguma coisa, domingo? Seus filhos
podem ir?
- Ôpa, tenho que ver com a patroa. Mas deve dar, sim. Que horas vai ser?
- A Clara marcou 15h.
- Xi, dá não, Francisco.
- É, o senhor tem programa?
- É que nesse domingo tem almoço na casa dos pais da minha mulher, 14h
tá marcado. Vou sair direto daqui pra lá.
- Ué, daqui?
- É que eu marquei uma coisa aqui de manhã.
- Mas o senhor precisa de ajuda? Não me falou nada. Pode pedir que tô às
ordens, Seu Nelson, o senhor sabe.
- Não, não precisa, eu... Ô, Francisco, faz uma coisa então... Me
encontra aqui às 9h de domingo...
- 9h de domingo? Ok, pode deixar.
- ... E traga a sua família.
- Como assim? Trazer minha família pro trabalho, Seu Nelson?
- Sim, exatamente.
- Tem alguma coisa errada, Seu Nelson? O senhor vai me demitir?
- Claro que não, Francisco. Apenas esteja aqui com a sua família às 9h
deste domingo. Combinado?
- Sim, senhor.
O pessoal do escritório da construtora tinha acabo de chegar e Francisco
deixou o chefe tratar de assuntos da obra com eles. Faziam essas inspeções aqui
e ali pra ver se estava tudo nos trilhos e sendo cumprido a tempo. Essa semana
seria diferente de todas as anteriores. A chegada das obras de arte tinha começado
no sábado anterior. Era segunda feira, sete e cinquenta e sete da manhã e todo
tipo de arte continuava a ser entregue. Pelo visto, toda aquela confusão só
teria fim a minutos da abertura oficial. De uma maneira apressada, equipes
diversas se movimentavam, descarregando e carregando meio atabadoalhamente
telas, esculturas, caixas e mais caixas, lonas gigantes e pedaços de materiais
coloridos. Eram formas estranhas para os olhos de Francisco e seus colegas na
obra. Sabiam que construíam um museu de arte e pensavam que arte tinha coisas
sérias, como pinturas de paisagens, mas também tinha coisas malucas, que muita
gente não entende e se sente meio idiota olhando. Alguns tinham curiosidade
genuína sobre o tema, mas sua condição social criava um abismo entre mundos, o
da vida com trabalho e o da arte - e aquele, sim, às vezes parecia até uma
brincadeira. As crianças de Francisco gostavam de recortar figuras nas revistas
descartadas pelos patrões de sua mãe e que ela trazia para dentro de casa.
Clara olhava as fotos de gente famosa, lia uma coisa ou outra e logo liberava
para eles desenharem com pilô sobre as páginas e recortarem livremente
personagens diversos, pessoas e bonecos, prendendo tudo com durex na parede do
quarto, fazendo por fim uma grande história. E talvez aquilo fosse arte também,
mas de crianças, sem valor. Naquele dia, Francisco chegou em casa mais tarde do
que de costume por conta da correria até a data de abertura das portas do Mar.
As crianças já tinham jantado e assistiam TV. Clara sempre esperava pelo marido
ao máximo, tapeava a fome com uma xícara de arroz e feijão fresquinhos que
preparava todos os dias para Maria e Gabriel. Quando Francisco chegou, os
filhotes já estavam no quinto sono. Fazia uma noite tão bonita que Clara propôs
colocarem as espreguiçadeiras de alumínio para fora de casa, justo em frente à
casa, como faziam nos fins de semana em que havia almoço comunitário.
Sentaram-se de cara para um céu de estrelas e uma luz crescente que brilhava
mais intensamente naquela noite. Parecia que havia sido feito um corte no céu,
um rasgo não intencional provocado por um esbarrão de algo pontudo, e dava para
se ver toda a luz que havia por detrás de um pano preto azulado. As estrelas,
dizia Clara, apertando a mão esquerda do marido que já estava todo relaxado e
com a segunda cerveja Brahma na mão direita, são furinhos que acontecem naquela
imensa redoma. Elas vem com o tempo. Seriam como as bolinhas brancas que temos
que retirar das roupas com bastante uso. Só que ali, continuava Clara, era o
contrário. Enquanto na roupa, o acúmulo de bolinhas prenunciava (na verdade,
ela disse mostrava) a proximidade do fim do ciclo de vida daquela peça de roupa
(ela disse daquela roupa que estava ficando velha e logo estaria feia), o
céu furado por sua vez dizia para todos nós que há muita luz nessa vida, que há
coisas maravilhosas esperando por nós, mas que tudo isso a gente não sabe e não
vê. Mentira! Que a gente vê, sim. Mas é preciso estar sentado ao lado de um
grande amor em uma noite linda como essa para conseguir ver. Francisco
espantou-se com aquilo tudo. Era um espanto legítimo e emocionante. Sabia que
sua mulher era romântica, ele próprio também, mas ouvir de sua boca uma coisa
tão bonita assim, ainda mais espontaneamente. E estando os dois sozinhos em um
raro momento de paz e sossego, aquilo para ele tornou-se arrebatador. Clara
dissera aquilo olhando para o céu, só fitando ele pelo canto dos olhos. Os
olhos de Francisco marearam, Ele apertou a mão dela e disse - Amor, que coisa
mais linda. Você tinha que escrever o que disse... E eu nem sabia que você
fazia poesia. - Nem eu, disse ela. Não sei se é poesia, está mais para amor,
faz a gente olhar diferente para as coisas, ver coisas e histórias que não se
vê sem esse olho de amor. Francisco e Clara foram em seguida para o quarto do
casal, trancaram a porta e se entregaram um ao outro de um jeito que não
acontecera antes. Ela gozou, ele gozou, cada um no seu tempo e com a
tranquilidade dos casais que se sabem, se entendem. Pela manhã, Francisco acordou
com restos de beijos da noite anterior, abriu os olhos e viu a mulher sorrindo
e despedindo-se, como sempre fazia. A rotina seguiu antecipada, pois Francisco
não conseguia mais dormir. Não sabia se era de felicidade, ou de uma noite bem
dormida após um sexo eletrizado, ou até, quem sabe, se era porquê o aniversário
do filhote estava chegando, ou se era porque em breve mudaria de projeto, pois
o MAR estava em sua última semana. O dia transcorreu, a semana transcorreu.
Francisco esquecera de contar à sua mulher que teria que trabalhar no Domingo.
Nem que tinha supostamente que levar a família com ele para o trabalho. Que
maluquice era aquela de pedir pra levar mulher e criança pra obra? Seria
demitido, só podia ser isso. Era isso. E o chefe ia explicar para a família
toda. A mulher ia chorar e o chefe queria ajudar a acalmá-la. Nada melhor que
ter as crianças por perto para ela segurar a barra e ajudar o marido, tudo
junto. Mas se não fosse demissão, levar os filhos para ver trator tudo bem,
isso fazia todo sentido, agora, resto de obra sei não, é confuso, sempre tinha
gente feliz com tudo que deu certo, mas sempre, sempre tinha cara amarrada
também: o peão que levou esporro porque fez merda e o chefe puto com as merdas
que o peão fez. E já era noite de Sábado quando Francisco lembrou disso tudo,
do pedido do Seu Nelson para que estivessem às 9h na obra. - Pelo menos, é do
lado de casa, Clara... A gente vai lá e volta logo. - Como assim, Francisco,
vai lá e volta logo? Tu num vai ter que trabalhar lá, homem? Justamente no dia
do aniversário do teu filho? - Acho que sim. - Como acha que sim, Francisco?
Teu chefe não disse que é trabalho? - Acho que sim. - Ai, meu Deus, desisto de
entender. Amanhã a gente vê.
O céu azul claro com sol menos forte do que o que vinha fazendo a semana
inteira prometia uma tarde deliciosa para a festinha de aniversário do Gabriel.
A casa estava limpa e arrumada, a mesa exibia a melhor toalha e o jogo de
pratos e copos coloridos que tinham comprado para ocasiões especiais. A comida
fora preparada de véspera, parecendo até que Clara tinha adivinhado que o
marido ia chegar com uma ideia maluca de levar, a pedido de seu chefe, a
família ao trabalho. Menos mal. O único problema era que teriam que se arrumar
bem duas vezes. Sim, porque ela não iria aparecer no trabalho do marido com
qualquer roupa. Nem ela, nem as crianças. Francisco ia sempre trabalhar de
jeans e camisa de botão com cinto e, se necessário, ele se trocava ao chegar na
obra. Decidiu, então, que iria colocar o vestido da festa e as crianças iam
colocar a roupa da festa. Era dia de domingo e estavam acostumados a sair de
casa para a missa das onze. Mas como era aniversário de seu filho, deixou a
missa de lado naquele dia. Agora, com essa história nova, a roupa de domingo
serviria para a festa e para a ida ao trabalho do marido. Isso era ser uma boa
mulher para Clara: olha o problema, decide alguma coisa e vamos em frente. As
crianças estavam eufóricas com o clima de festa. Francisco estava nervoso com a
expectativa de uma demissão. Algo tinha dado errado, a firma pediu sua dispensa
(consultou disfarçadamente os amigos e descobriu que ninguém mais iria no
Domingo, o que o levou a concluir o que já sabia). Pronto, Seu Nelson era boa
pessoa e gostava dele, mas viera uma ordem de cima e não tinha jeito. Minutos
antes das nove horas, estavam Francisco, Clara, Gabriel e Maria arrumados,
perfumados e de mãos dadas no portão de trás, por onde entravam os
funcionários. Francisco estranhou que Jorge, o segurança não estivesse na
cabine. Devia ser o banco de horas dele que estourou, pensou... - Mas vão
economizar logo na segurança? Acabou falando alto. Quando sua mulher ia
perguntar o que havia dito, ouviram barulho de crianças correndo,
brincando e uma voz, que parecia do Seu Nelson, sim, era a do Seu Nelson,
pedindo que parassem. Em seguida, Seu Nelson apareceu sorrindo, abriu o portão
e pediu que entrassem. Cumprimentou Clara, passou a mão na cabeça de Maria e
deu os parabéns a Gabriel, o menino da família, para em seguida dizer o
seguinte.
- Francisco, fico muito agradecido por você haver me convidado, e a
minha família, para o aniversário do Gabriel. Mas infelizmente a gente não vai
poder ir mesmo.
- Não tem problema, Seu Nelson, eu entendo, nós entendemos que o senhor
tem...
- Mas eu não podia deixar de dar o presente do Gabriel...
- Ah, que isso seu Nelson, eu avisei pro senhor, sem presente... As
coisas tão caras, o senhor tem filhos...
- Mas quem disse que meu presente me custou dinheiro?
Francisco não entendeu nada, olhou para Clara, que também fez cara de
perdida.
- Francisco, meu presente pro Gabriel não é de comprar. O meu presente
pro Gabriel quem fez foi o pai dele, viu Gabriel, o presente do tio Nelson, da
tia e dos meus filhos foi seu pai que fez. E ficou lindo. Ninguém entendeu
nada. Nelson prosseguiu dizendo - É esse museu, Gabriel. O seu pai construiu
esse museu, o museu mais bonito do Rio de Janeiro todo. Foi seu pai quem fez,
ou fez um bom pedaço dele.
- Desculpa Seu Nelson... Mas eu preciso saber, o senhor está me
demitindo?
- Que demissão, Francisco, bebeu? Você é meu braço direito e onde eu for
você vai comigo. Será assim até o fim. O que estou dizendo aqui pro teu filho é
o contrário, amigo. Tu é um cara tão trabalhador e tão bom no que faz que vai
poder levar tua família pra conhecer o museu inteirinho antes da cidade
inteira. Ah, e sem pagar ingresso!
Francisco continuava sem entender. Então, não seria demitido? Ufa, só
isso já era um presente e tanto para todos eles. Custava a acreditar que o seu
chefe tinha feito uma surpresa daquele tamanho para seu filho, para todos eles.
Que presente. Nesse momento, saíram de dentro da porta dos fundos do MAR, Dona
Solange, a mulher do Seu Nelson e os dois filhos do casal, dois meninos de dez
e oito anos. Todos se cumprimentaram. Clara enxugou as lágrimas antes de dar
dois beijinhos em Dona Solange e as crianças sorriram umas para as outras.
Deram a volta por dentro e saíram na entrada, agradeceram ao segurança que
estava na frente do prédio, pegaram o elevador que os levou até o terraço. Esse
era o percurso oficial do museu, que tinha sido feito na quinta-feira, durante
o coquetel de abertura, por artistas, galeristas, marchands, jornalistas,
críticos de arte, colecionadores e autoridades diversas, do poder público e do
poder público-privado. O museu fora limpo no dia seguinte e organizado no
sábado para reabrir na segunda-feira para o público. Clara ainda não acreditava
no estava fazendo. Tinha o museu inteiro para sua família. Todas as luzes
acesas, tudo ali dedicado a eles, em homenagem a seu filho que fazia cinco anos
naquele dia. Em homenagem a Francisco que podia mostrar melhor o que fazia a
sua família. Paredes firmes, piso reto e bem colocado, colunas e estruturas. E
tudo aquilo para guardar arte, quadros, esculturas, objetos interativos, coisas
que não se compreendia, mas era bonito de se olhar. Um mundo novo inteiro só
para eles por duas horas. Esse era o combinado de Nelson com o chapa Luiz, que
estava de plantão naquela manhã. Tinha tido a ideia e agendado com o amigo
segurança antes de ser chamado por Francisco para o aniversário do menino. Mas
quando soube que o garoto fazia aniversário, não resistiu. Andaram o museu todo
de mãos dadas os quatro, Francisco, Clara, Gabriel e Maria. Logo na metade, os
meninos do Nelson avançaram demais nos corredores e saletas, e as famílias
acabaram se separando, a de Francisco e a do Seu Nelson. Combinaram de
encontrar na saída. O silêncio agora dava forma a uma atmosfera desconhecida
dos quatro. Francisco e Clara nunca haviam estado em um museu. Andaram juntos
olhando cada peça, lendo cada texto e mesmo sem nada entender, pareciam seguir
uma ritualística que aflorara ali, surgia em salas sem móveis, decoradas
apenas com objetos do que se chamava de arte e suas plaquinhas brancas
informando o nome da peça, os materiais usados pelo artista, quem fez e o ano
em que foi feita. Quem olhasse veria algo maior em processo de construção.
Rostos assombrados com tantas formas e cores. Rostos delirantes com uma
experiência que os marcaria para sempre com novas emoções e sentimentos,
trazendo magia à vida, transformando aquelas pessoas por dentro. O resto do dia
foi perfeito. À noite, quando Maria já tinha desmaiado fazia duas horas e
Francisco colocava o pequeno e excitado Gabriel para dormir, ouviu do filho uma
confirmação de que realmente eram pessoas diferentes a partir do dia em que a
arte entrou em suas vidas.
- Pai, já decidi o que eu vou ser quando crescer. Vou ser a mesma coisa
que você. Vou ser artista.
Em
breve... CAPÍTULO 2. AUSÊNCIAS